terça-feira, 11 de dezembro de 2012




SUSTO DE MATAR

José Henrique Ferreira Leite

Escritor bissexto.


        Não poucas vezes, ao longo da vida, vivemos momentos de intensa felicidade, tristeza e grandes sustos. Somos seres limitados. Não podemos fugir disso. No quadro dessas limitações está nossa total incapacidade de prever o que nos acontecerá já nos momentos seguintes, nos próximos segundos. Diante dessa absoluta falta de aptidão para prever o futuro, o dia a dia, por vezes, nos prega alguns sustos. Sustos que podem até trazer surpresas agradáveis. Sustos ocorrem, porém, que se fosse possível antevê-los passaríamos há milhares de quilômetros deles.
        Trinta e quatro anos já se passaram – mas lembro com toda nitidez – desde que levei um desses sustos de deixar o sujeito totalmente paralisado. Sim, porque no caso do susto que passo a contar, falar só da falta de ação não diz do verdadeiro estado em que fiquei. Na verdade, fiquei em situação de total desespero.
        O ano era o de 1978. O Coral da Secretaria de Educação e Cultura do então Território Federal de Roraima, sob a batuta do saudoso maestro Dirson Costa, era o que de bom possuía a terrinha em termos de cultura musical. O Coral da SEC, como era conhecido, depois de alguns anos de criterioso trabalho e rotineiros ensaios transformara-se em um dos bons corais do Brasil. Tanto que, à época vinha de alguns périplos por algumas capitais do país. A toda hora o coral recebia convites para encontros e temporadas Brasil afora. Até convites para apresentações internacionais. De Caracas e Lima os convites já estavam confirmados. O repertório dos seus quarenta e oito figurantes era de muito bom gosto, consistente e variado. Ia do rico acervo folclórico e popular brasileiro de todos os tempos e de diversos países. Sem contar que, o forte do repertório do grupo baseava-se em peças dos grandes compositores clássicos.
        O coral tinha uma diretoria comprometida e atuante. Naquele ano o grupo todo se empenhara na realização de uma série de promoções para angariar fundos com vistas a cobrir parte das despesas de viagem a Recife, onde iria participar de um encontro nacional de corais. Só uma parte dos recursos, porque naqueles bons tempos, o Governo do então Território Federal, que compreendia a importância da cultura, entrava com a maior parte das despesas de viagem do grupo. Havia sensibilidade da área governamental em relação àqueles que tinham talento, amor, disposição e coragem para enfrentar os duros e longos ensaios e viagens para levar o nome de Roraima aos mais distantes recantos do Brasil e países vizinhos. No caso, a viagem se daria em duas etapas: Até Belém, ida e volta com passagens de avião pagas pelo Governo. De Belém a Recife, ida e volta, despesas com frete de ônibus por conta dos componentes do coral. Por isso, as promoções para arrecadar recursos.
        Em 1978 a população de Boa Vista não chegava a 100 mil pessoas. Dava para envolver significativa parcela da sociedade em favor de uma específica atividade cultural. Para aquela viagem promoveu-se vários eventos como festas dançantes, bingo, feijoada, rifas de animais doados por fazendeiros, sorteio de quadros dos reconhecidos pintores regionais Walniro e Cardoso e um livro de ouro para receber doações de empresários, comerciantes e quaisquer outras pessoas que quisessem participar do projeto. Na época ainda existiam os mecenas da cultura. Além disso, como estímulo às doações, o coral se apresentava no Palácio da cultura, escolas, igrejas e sedes de municípios vizinhos.

        As promoções deram certo. Juntou-se recurso suficiente para fretar o ônibus e pagar alimentação para todo o grupo durante a viagem e mais uma pequena provisão para despesas não previstas.
        Aqui começa concretamente a história do grande susto que levei. Na qualidade de presidente do grupo, do qual gozava total confiança, saí de Boa Vista três dias antes da viagem para fretar o ônibus e esperar a turma já no aeroporto de Ponta Pelada, Belém, e dali mesmo seguir viagem para Recife. Na época não se dispunha dos bons e seguros cartões de plástico (débito/crédito) hoje tão difundidos e necessários. Tampouco, os caixas eletrônicos que tanto facilitam nossas vidas hoje em dia.
Embarquei com toda a grana arrecadada nas promoções. Algo (se atualizada) em torno de 30 mil reais. Como naquele momento não tinha uma bolsa a tiracolo, peguei a grana toda e coloquei dentro de uma daquelas pastas de cartolina com elástico e meti-a num enorme envelope pardo. Passei fita adesiva (durex) para fechar o envelope e escrevi em letras bem graúdas: “Encomenda aos cuidados do senhor José Henrique Ferreira Leite para ser entregue na casa das madres em Recife”. No outro lado do envelope tinha o meu endereço e telefone de Boa Vista e o mesmo do local em que o coral se hospedaria em Recife, um casarão habitado por madres. Viajei com aquela “encomenda” colada debaixo do braço. Compraria uma bolsa a tiracolo logo ao chegar ao aeroporto de Manaus no intervalo da conexão do voo para Belém.
        Cheguei na capital Manauara por volta das duas horas da madrugada. O voo para Belém estava previsto para as sete da manhã. Não era prudente nem compensaria ir para algum hotel da cidade naquele horário. Resolvi ficar ali mesmo no aeroporto até que abrissem as lojas. Nas vitrines de várias delas vi bonitas bolsas do tipo que desejava comprar.
        Como o movimento no aeroporto era quase nenhum, resolvi acomodar-me em uma das poltronas da sala de espera. Mas ao chegar à sala dei de cara com a colega Fátima Nogueira, integrante do coral, que vinha de um encontro de professores em Brasília e que também esperava conexão para Belém onde se juntaria ao grupo. Seu voo estava previsto para as oito horas em outra companhia aérea. No que Começamos a papear, informando-lhe o horário e a companhia em que viajaria, convenceu-me a transferir meu bilhete de passagem para o seu voo. Pertinho de onde estávamos, coisa de uns cinquenta metros, ficava o balcão da companhia da colega. Fui até lá pra fazer a transferência de voo. Maldita transferência! No que peguei o meu bilhete de passagem para entregar à funcionária que efetuaria a mudança, tirei o bendito envelope que carregava colado debaixo do braço esquerdo e o coloquei sobre o balcão com os cotovelos em cima dele. Efetuada a operação de mudança de voo, peguei o novo bilhete e saí tranquilamente, agora balançando os dois braços. Nem notei que algo se despregara do meu corpo.
        Lá pelas quatro da madruga, já cansado de papear, pedi licença da colega e busquei um jeitinho na desconfortável poltrona para tirar uma soneca. Ao tentar forrar a cabeça com o tal envelope recheado de dinheiro, a surpresa! Ele tinha sumido. Meu Deus! Como teria alguém furtado aquele pacote que andava grudado no meu corpo? Fiquei pálido e totalmente perturbado! Contei rapidamente para a colega o que tinha acontecido. E agora, o que fazer?
Naquele horário, afora alguns taxistas que conversavam na área externa do aeroporto não havia mais ninguém. Somente eu e a colega Fátima Nogueira naquela sala de espera. Em estado de choque, esquecera totalmente de que saíra para providenciar a transferência de voo. Minha colega então falou:
– José, meu amigo, vi quando você saiu com aquele pacote debaixo do braço. Quem sabe não o deixaste em cima do balcão na hora de transferir o bilhete? A funcionária com certeza o guardou até o dono o procurar. Desespera, não...
        Nem quis ouvir mais nada. Saí em desembestada carreira chegando àquele balcão em pouquíssimos segundos. Não havia mais ninguém ali. Mas, em uma das prateleiras do balcão, lá estava um envelope pardo exatamente igual ao que carregava debaixo do braço desde que saíra de Boa Vista. Não pensei duas vezes: De um salto passei pra dentro do compartimento, agarrei com força o bendito envelope e corri para o banheiro mais próximo. Tranquei-me em um dos boxes e sentei no vaso já me desmanchando por dentro. Rasguei o envelope. Arranquei os elásticos da pasta e conferi a grana ali mesmo. Cédula por cédula. Não havia motivo para tanto desespero. O dinheiro estava todo ali.
        Ao retornar para junto da colega meu ânimo já era outro. A barriga totalmente esvaziada não doía mais e meu coração que havia disparado agora estava no seu tic-tac normal. O sono era coisa do passado. Estava amanhecendo. Algumas lojas já abriam suas portas. Corri para a mais próxima que abriu, comprei uma bonita bolsa a tiracolo da boa marca Sansonite e botei tudo dentro dela; inclusive o susto e a promessa da amiga Fátima de que jamais contaria essa história sem a minha permissão. Como estou contando isso agora, ela está livre para falar.
        Tirei uma boa lição disso. Não se deve andar por aí com envelopes soltos. Em algum momento ou em algum lugar você poderá esquecê-los.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012


UMA VIAGEM PRA NUNCA ESQUECER.
José Henrique F. Leite
Escritor bissexto


        A ansiedade pulsava nos corações daqueles circunspectos senhores. Alguns não conseguiam esconder o medo que sentiam por estarem na iminência de voar pela primeira vez. No pátio do acanhado aeroporto da pacata Boa Vista, que ainda dormia, os motores de um velho DC-3 da Força aérea Brasileira roncavam desesperadamente, fazendo toda a sua estrutura tremer. Dos canos de descarga em brasa viva saía uma grossa coluna de fumaça esbranquiçada. Seu Antônio Guida, um calejado agricultor da região do Taiano, passageiro daquele voo, irrequieto e pálido aproximou-se do mecânico da aeronave e disparou:
        - Ôoo seu oficiá, nois vai vuar nessa besta fera fumaçando assim?
        - Não se preocupe cidadão, esse é o avião mais seguro que já foi fabricado no mundo. Nem os alemães conseguiram derrubá-lo na segunda guerra mundial.
O velho passageiro aquiesceu. Mas sua expressão severa denotava que não ficara de todo satisfeito com as ponderações do confiante mecânico. A lividez estampada na cara do rijo agricultor dizia do seu grande arrependimento por ter topado aquela viagem a Brasília. Para reforçar os seus temores, um casal de maçaricos que morava na beirada da pista de pouso, incomodado com o movimento anormal daquela manhã, denunciou a invasão do seu território do jeito que os maçaricos sabem fazer, ou seja, esguelando-se a mil decibéis! Coisas de maçaricos. Para o seu Guida, aquilo soou como aviso, um sinal de mau agouro. Ora, mas se ninguém até ali se manifestara, desistindo da tal viagem, não seria ele, cabra macho que já enfrentara até onça na mata, que iria dar tamanha mostra de frouxidão. Já estava com um pé na escada, que viesse o resto, então.
Assim começava a viagem mais dramática e inusitada da minha vida, a começar pelos sujeitos que me acompanhavam e a encomenda que deveria entregar a uma alta autoridade da República.
Estávamos ainda envoltos pela penumbra daquela manhã em que o sol timidamente dardejava os primeiros raios, quando se ouviu a voz grave do comandante dando a ordem de embarque. Entre discretos sussurros, dez tensos senhores de meia-idade, esbarrando-se uns nos outros, subiram e tomaram assento na desconfortável aeronave. Não havia poltronas. Os assentos, todos de ferro, ficavam dispostos em duas fileiras fixadas no piso e recostados nas laterais da fuselagem do avião, de sorte que os passageiros ficavam um de frente para o outro, atracados por rudes cintos de segurança.
O voo previa escalas nas cidades de Manaus e Marabá, com pernoite na cidade de Porto Nacional e, finalmente, Brasília.
Os heroicos passageiros tinham sido escolhidos entre trabalhadores rurais e urbanos para participarem de um seminário sobre administração sindical – pasmem – patrocinado pela Presidência da República. Vivia-se àquela época, 1977, o período de distensão política do general Geisel, que impôs a transição da ditadura militar para o regime democrático de forma lenta e gradual. Tão lenta que, depois dele ainda veio o grosseiro general Batista Figueiredo, um presidente que gostava mais do cheiro dos cavalos do que do contato com o povo.
Viajar com aqueles homens, na maioria rudes trabalhadores, não foi tarefa fácil. Não tão delicada, porém, do que levar a encomenda da tal autoridade, vice-presidente da República. E veja-se que encomenda! Um casal de jaburus para enfeitar os gramados do palácio que leva o nome daqueles pernaltas.
Quem conheceu o Palácio Hélio Campos da década de setenta deve lembrar-se de um casal de jaburus que vivia ali. Com a morte da fêmea, o macho triste e agressivo passou a oferecer perigo a quem dele se aproximava. Com o pedido do vice-presidente surgiu a oportunidade de arranjar-lhe uma nova companheira. E ela existia e já o esperava no zoológico de Manaus.  
A viagem que estava prevista para dois dias, durou três com dois pernoites.
 Ao chegar a Manaus, a companheira do Jaburu de Boa Vista não estava pronta para embarcar, o que obrigou a pernoitar ali. Na manhã seguinte, como ocorrera na manhã anterior, os motores da velha aeronave ao serem ligados começaram a roncar com as falhas já conhecidas. Dessa vez, porém, a coluna de fumaça saía mais densa e mais escura. O seu Guida, sempre observador e precavido notou a diferença. Ensaiou dizer alguma coisa, mas calou-se diante do olhar severo do mecânico.
A aeronave alçou voo de Manaus e seguia sem transtornos, quando já perto de Marabá um dos motores começou a pipocar, parando de vez, minutos depois. Diante do medo dos passageiros, o comandante imediatamente saiu de sua cabina de comando e, sem demonstrar nenhuma preocupação, pediu calma, informando que o avião tinha condições de voar o restante do percurso com um só motor e pousar com segurança. Estava certo. Uma hora depois, sob os aplausos de todos, colocou aquela geringonça suavemente no chão de Marabá.
Aquela era uma situação que os tripulantes, ao que parece, já haviam encarado muitas vezes. O sargento mecânico conhecia as manhas daquela máquina. Não precisou de mais de quarenta minutos para fazer os motores rugirem novamente.
Nova ordem de embarque e lá estávamos obedientes e submissos dentro daquela geringonça que a toda hora ameaçava despencar. Não completara vinte minutos de voo e o segundo motor que até ali resistira bravamente, também deu sinais de que iria parar. Foi o que aconteceu logo a seguir. O medo tomou conta de vez dos passageiros. Só os jaburus pareciam não se preocupar com aquele alvoroço todo. Também, pudera, sabiam voar...  Mas o comandante era dos bons. Pouco tempo depois estávamos pisando o chão de Marabá outra vez. Nesse ponto alguns já queriam desistir da viagem. Mas de que jeito? Como voltar pra casa daquele lugar tão desconhecido?
Não havia outra opção senão encarar o velho avião mais uma vez. Ele já provara por duas vezes que era duro na queda. E, entre orações, rezas e esconjuros, outra vez embarcamos naquela geringonça, agora com proa direcionada para Belém, onde o comandante contava com a possibilidade de trocá-la por outra que pudesse levar a todos sãos e salvos ao destino traçado.
 Afora os pipocos dos motores que se repetiram na decolagem, nada de mais extraordinário aconteceu até Brasília. Isso fez renovar as esperanças e colocar fé nas palavras do mecânico de que se os alemães não conseguiram derrubar aquela aeronave, não seriam alguns pipocos que o fariam.         
O segundo pernoite foi nos alojamentos do aeroporto militar de Belém. Malgrado o cansaço, ninguém conseguia dormir. As conversas giravam sempre em torno do longo e desastrado voo. Será que aquela velha carcaça voadora suportaria o tranco até Brasília? A desconfiança era grande. No dia seguinte, contudo, embarcamos em um aparentemente mais conservado DC-3, o que trouxe relativa tranquilidade aos ressabiados passageiros.
Como das vezes anteriores, a decolagem foi às cinco horas da manhã. Depois de mais de duas horas de voo sem maiores percalços, a confiança de todos retornava pouco a pouco. Já havia até disposição para comer algo, coisa que no dia anterior ninguém sentira vontade. Não era para menos!
Os jaburus recusavam alimentos. Durante os três dias de viagem simplesmente rejeitaram os peixes oferecidos.
 Enfim, Porto Nacional, última escala antes de chegar a Brasília. Nessa altura é bom lembrar-se de dois personagens que fizeram parte daquela inesquecível viagem. O Salomão Filho, na época um rapaz dos seus vinte anos de idade que pegara carona em Boa Vista. Ia encontrar-se com o pai que já estava em Brasília para uma reunião de agropecuaristas. A outra carona, uma mulher atraente de aparentes quarenta anos, que se dizia enfermeira, embarcou em Belém, entocando-se na cabine de comando. Das vezes que saiu para conhecer os demais colegas de viagem, mostrou-se comunicativa e desenvolta. Tinha um jeito misterioso de falar e de olhar. Era, na verdade, uma personagem intrigante. Mas foi muito útil como se demonstrará a seguir.
Ao levantar voo de Porto Nacional, o cansaço era geral. Ninguém aguentava mais ficar sentado naqueles assentos de ferro. Cada um se arrumava como podia, procurando uma posição menos desconfortável. E, aqui, entra na história a figura do primeiro carona, um sujeito magricela e alto que possuía um enorme nariz, aliás, possui, pois está vivinho da silva.
Todos caiam de sono quando o magricela buscando posição mais confortável desafivelou o cinto de segurança e escorou-se no engradado em que estava um dos jaburus. O pernalta, que há a três dias não comia, meteu o enorme bico por uma das brechas do engradado e aplicou certeiro golpe naquele narigão, quase o decepando da cara do infeliz. Foi um momento de pavor! No primeiro instante, ninguém sabia o que tinha acontecido com o carona que, aos pulos, com a cara lavada de sangue e o nariz dependurado gritava desesperado: foi o jaburu, foi o jaburu! O bicho queria comer o meu nariz... A tal enfermeira, então, entrou em ação e pôs as ventas do sujeito no lugar, segurando-as até chegar a Brasília.
Assim chegamos a Brasília: Um grupo de estropiados trabalhadores, um carona com seu grande nariz seccionado e um casal de famintos jaburus. Ainda bem que chegados à capital do país, fomos alojados em um excelente hotel, o que nos permitiu uma bela noite de sono. Quanto ao carona, foi encaminhado a uma clínica para reparar o narigão avariado. Não se sabe se as aves sobreviveram, uma vez que durante a viagem rejeitaram os peixes oferecidos e o único alimento que despertou o apetite de um dos pernaltas escapou-lhe por um triz. Aquele enorme nariz bem que daria uma boa refeição para o faminto jaburu.
A semana na capital do país deixou a turma de trabalhadores deslumbrada. Rapidamente todos esqueceram a dramática viagem. O assunto agora estava voltado para o seminário, os passeios turísticos pela cidade, a excelente hospedagem, a apetitosa comida e o encontro com o presidente Geisel no palácio do planalto.
Mas, algo me atormentava. O retorno previsto para as cinco da manhã do sábado que estava às portas. Até ali eu me esforçara para demonstrar coragem e calma. Mas só eu sabia do medo que se apossara de mim. Não dormi um só minuto daquela noite que antecedeu o retorno. Porém, meus companheiros de viagem, com exceção do senhor Guida, davam sinais de tranqu/ilidade e mostravam-se felizes. Nenhuma lembrança da fatídica viagem da semana anterior parecia atormentá-los.
Cinco horas da manhã no aeroporto Internacional de Brasília. O ronco dos motores do velho DC-3 já se fazia ouvir. Seu Guida, despachado como sempre, não vendo sair fumaça escura dessa vez, foi logo disparando: É... Meus amigo, num tô vendo sair fumaça feia desse aí, não! Agora nois vai chegar é ligeiro! Tô falando pra vocês.
 E o velho DC-3 não decepcionou, mesmo. No mesmo dia, já pertinho das cinco horas da tarde, como previsto, estávamos na capital amazonense. Deu até tempo para fazer umas comprinhas na Zona Franca de Manaus.
Cinco horas da manhã. Aeroporto de Ponta Pelada. Pessoal na pista e mais uma vez o ronco dos motores do velho DC-3.
- E aí seu Guida, tá feliz? Perguntou um dos companheiros de viagem. Daqui a pouco, a gente bota os pés na terrinha, né?
- Num sei, não! Tu num tá vendo que a besta fera tá cum barulho deferente, agora? E oia a fumaça preta de novo! Agora só tá faltando os diabo dos maçarico...
O seu Guida estava certo. Com menos de duas horas de vôo os motores do avião começaram a pipocar. Agora eram os dois ao mesmo tempo. O avião começou a perder altura. Imediatamente o comandante saiu da cabina de comando e ordenou: sargento, abra a porta do avião. Vamos aliviar o peso da aeronave. Quem tiver dinheiro, documentos ou outros objetos de valor dentro das malas ou sacolas, retire-os para si e joguem toda a bagagem fora, imediatamente. Se necessário, vamos fazer um pouso de emergência no primeiro retão da estrada. Todos nos seus assentos com os cintos de segurança afivelados, peito sobre as pernas e boa sorte! 
O avião perdia altura e agora voava baixo sobre a estrada. Era tempo de rezar e entregar a alma a Deus. A aeronave baixava cada vez mais. As copas das árvores mais altas já podiam ser vistas acima das nossas cabeças. Pavor generalizado! Só a tripulação se mantinha calma. Os dois motores pararam simultaneamente seguidos de vários baques sob nossos pés. Uma nuvem de poeira avermelhada fez a mata sumir. De repente uma forte pancada na asa direita fez a aeronave rodopiar sobre a piçarra, parando logo a seguir. Do assento do seu Guida ouviu-se um grito de alívio: Ai meu Deus! Nois tamo tudo vivo!
O velho DC-3 batera no tronco de uma imbaúba, o que o fizera rodopiar sobre o próprio eixo sem sair da estrada. Isso foi tudo. Ninguém saiu ferido com gravidade, a não ser alguns com pequenas escoriações e outros reclamando de dores na coluna por não terem se agachado direito.
De resto, não havia o que fazer a não ser exercitar a paciência e esperar os carros que vinham de Manaus – na época, um aqui outro acolá – e pedir deles uma carona. E foi de carona que os passageiros daquele velho DC-3 – que nem os alemães conseguiram derrubar – chegaram a Boa Vista.
Uma viagem pra jamais ser esquecida!           .

                    
     
  
PS: Relação de passageiros da inesquecível viagem:

1)   Antônio Guida – Taiano (in memoriam);
2)   Raulino Castro – Taiano (in memoriam);
3)   Jonas Lima –Cantá – (in memoriam);
4)   Raimundo Cardoso – Cantá (in memoriam);
5)   Alquelino Cunha – Boa Vista (in memoriam);
6)   Rubem Bento – Boa Vista (in memoriam);
7)   Adonias Araújo – Boa Vista (in memoriam);
8)   Alencar de Melo Magalhães – Boa Vista;
9)   Francisco das Chagas – Caracaraí;
10)  Salomão Lima Filho – Boa Vista;
11)  José Henrique Ferreira Leite – Boa Vista.       

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


QUEM É MESMO O PAPAI NOEL?
José Henrique Ferreira Leite
Escritor bissexto

Uma vez, no mês de dezembro do ano de 1996, uma professora me pediu para escrever uma mensagem para ser lida na confraternização de natal dos funcionários, pais e alunos do colégio Objetivo de Boa Vista, onde eu era diretor administrativo. Queria que eu falasse sobre o Papai Noel. Alertei-a de que eu não era a pessoa mais indicada para aquela tarefa. Contei-lhe da minha experiência frustrante com o velhinho na minha infância.
Tinha dez anos, quando pela primeira ouvi falar no Papai Noel. Apresentaram-me como sendo um velhinho bom, de barbas brancas, que carregava nas costas um saco de presentes para as crianças de todas as idades do mundo todo. Mas isso não podia ser verdade. Fiquei desconfiado. Como, aos onze anos de idade, naquele dia 24 de dezembro de 1959, nunca tinha ouvido falar nesse bom velhinho? Por que ele nunca havia aparecido lá pelo Centro dos Protestantes, no Maranhão, onde até seis meses atrás eu morava? Ali, como muitos da minha idade, não passava de um moleque sambudo que perdera a mãe com apenas quatro anos e que vivia com um bando de irmãos na casa do avô paterno. O papai de verdade andava por aí, não se sabe por onde. Durante o ano ele raramente aparecia. Bem que esse tal Papai Noel poderia ter aparecido por lá nas ausências do Papai de verdade.
Já em Boa Vista – trazido do Maranhão por duas tias com as quais passei a morar – não gostei de saber desse Papai Noel “bonzinho” que, como meu pai verdadeiro, só visitava as crianças uma vez por ano com algum presentinho. Eu não queria presentes. Eu queria um pai presente. Na minha cabeça de menino de onze anos esse tal Papai Noel não me incitava emoção nenhuma. Pelo contrário, tinha medo que me trouxesse mais contrariedade do que felicidade. E trouxe. Em primeiro lugar, disseram-me que tinha de dormir cedo na noite de natal. Ele não entregava o presente diretamente nas mãos das crianças. Era preciso estar dormindo porque ele passava meia-noite. Se a criança estivesse acordada, ele não deixava o presente debaixo da rede. Imaginem dormir com tanta ansiedade! Outra coisa me deixava embatucado: por que esse tal Papai Noel não passava cedo em casa e entregava os brinquedos diretamente para a criançada? Pra que tanto mistério? Mais uma: por que havia um tipo de Papai Noel que aparecia no campo de futebol João Mineiro ou na frente da casa do governador, na Jaime Brasil? Pude entender isso algum tempo depois. Mas de um detalhe não esqueço: tanto o primeiro presente que deixou debaixo da minha rede como os demais que ganhei no João Mineiro e na Jaime Brasil, nos anos seguintes, não passavam de presentinhos fajutos. O primeiro, um minúsculo carrinho de plástico que ao primeiro tranco, as rodinhas voaram pra bem longe. O segundo, uma luneta da cor de alumínio que não aproximava um centímetro sequer os objetos focados. As bolas de borrachas, que passei a receber nos natais seguintes, furavam ao primeiro toque no arame farpado das cercas que protegiam os quintais da época.  Uma lástima! Papai Noel sem-vergonha...   
        Bem, falei com minha amiga professora sobre essa pendenga que tinha com o velhinho da Lapônia imaginando que ela haveria de convidar outra pessoa para atender seu pedido. Que nada! Ela insistiu achando que aquela era uma boa oportunidade pra muita gente ouvir outro ponto de vista sobre o natal e o seu herói de barbas brancas.
Sem saída, topei o desafio. Escreveria um texto curto, pensei. Mas um texto que pudesse atingir o cerne da questão. Ou seja, com uma proposta que pudesse desmascarar o velhinho impostor que se instalara no imaginário das crianças como sendo o principal personagem do natal. Diria isso em vinte e cinco linhas, para lembrar que o dia 25 de dezembro é o dia de um menino muito jóia: o menino Jesus. Não desse tal “bom” velhinho de história fantasiosa e obscura.
        Aceitei o convite a contragosto. Escrevi de afogadilho. O texto saiu chinfrim. Porém, pela reação da maioria dos ouvintes o objetivo parece ter sido alcançado. O escrito causou bastante desconforto e pelo zunzunzum abrira um importante flanco de discussão sobre o assunto. Era o que a professora queria. Eu... Nem tanto.
Comecei o texto falando em rápidas palavras da fantasiosa e obscura história do Papai Noel, um pagão metamorfoseado e cristianizado – como foram muitas outras crenças e costumes – pela criatividade dos pais da igreja cristã primitiva. Que ninguém se engane, o bárbaro Papai Noel reformulado pela tradição cristã nunca deixou de ser pagão. Vejamos:
Affonso Romano de Sant’Anna, em seu livro de crônicas “Tempo de delicadeza”, põe luz sobre a origem do velhinho de barbas brancas. Diz ele que há duas origens do mito do Papai Noel. A mais comum está ligada a São Nicolau um santo que salvou marinheiros nas tempestades, libertou moças do cativeiro e ressuscitou crianças. Sua fama de bom velhinho vem daí.
A outra lenda – a mais provável – sobre sua origem antecede o cristianismo. Nessa história o Papai Noel não tem nada de bonzinho. Diz Affonso: o mito do velhinho que em pleno inverno europeu trazia às costas um saco cheio de presentes para distribuir às crianças, é, na verdade, a maneira como o imaginário cristão reformulou o mito arcaico que era exatamente o inverso do Papai Noel como hoje é conhecido. O personagem se chamava Nicolas. Estava sempre à frente de um bando de mascarados e por onde passava estalava seu chicote que fazia soar os sinos dependurados em seus trajes. O velho Nicolas e seu bando assaltavam os povoados e obrigavam seus habitantes a celebrarem com eles seus festins licenciosos. Por onde passavam sequestravam crianças e as punham dentro dos sacos que traziam. Essas incursões do bando liderado pelo velho Nicolas (Papai Noel) aconteciam exatamente no solstício do inverno europeu, vinte e cinco de dezembro, dia que a igreja, tempos depois, escolheu para fixar a data do nascimento de Jesus.
Há no inconsciente coletivo dos povos nórdicos, como também no dos franceses, belgas e alemães, a lembrança dessa horda de bandidos montados nos seus robustos cavalos. Affonso Romano anota que no folclore da região de Lorraine existe a figura do Pai com chicote, cuja ambiguidade remete tanto para o bárbaro que vinha chicoteando seus cavalos quanto ao Papai Noel que viaja docemente “chicoteando” suas renas. Romano informa ainda, que, coincidentemente, na biografia do São Nicolau, o chicote também aparece, mas de forma invertida. Na versão cristianizada o velho Nicolas que chicoteava passa a são Nicolau martirizado com um chicote. Na Alemanha, o “Klaubauf” é retratado na figura de um velho que carrega um saco para recolher crianças, remetendo ambiguamente para a mesma lenda. Na mesma linha, na Inglaterra esse vestígio da imagem arcaica e pré-cristã de Nicolau aparece no nome do capeta conhecido como “velho Nick”.               
Finalizei aquele texto firmando alguns pensamentos que até a mim pareceram muito fortes. Andei perto de me arrepender. Mas, finquei pé:
·         Papai Noel sempre foi um impostor.
·         Tomou sem nenhuma cerimônia o lugar do menino Deus.
·         Com aquele jeitão aparentemente bonachão ele pensa que engana a todas as crianças. A mim, por exemplo, só enganou uma vez.
·         O natal tem a ver com o menino Jesus, enquanto Papai Noel com a ganância comercial.
·         No natal do Papai Noel ele pratica extorsão contra os pais das crianças, compra tudo que lhe vem à cabeça, põe tudo no saco que carrega às costas e sai distribuindo o que não é seu.
·         Papai Noel não é um sujeito razoável. Ele é tão irracional quanto às renas que o conduzem.
·         Papai Noel é discriminador. Dá os melhores e mais caros presentes para quem menos precisa. Para os mais necessitados ele dá reles presentinhos ou, quando muito, as invariáveis cestas básicas que matam a fome das crianças pobres somente no dia do natal.
·         Um dia após o natal a barriga das crianças volta a roncar de fome. O “bom” velhinho já está longe... Lá para as bandas da Lapônia. Alguém sabe onde fica a Lapônia?
·         O tal Papai Noel não está nem aí para as crianças pobres da África ou dos guetos e becos das cidades grandes. Que morram! Ele só volta agora no ano que vem. Se voltar. Ultimamente ele anda de saco cheio com os pedidos cada vez mais exigentes das crianças pobres. Elas, também, querem tênis de marca, roupas de grife, celulares smartfones (Iphone, blackberry,galax S II),  tablets, etc.

            Como havia previsto, a maioria dos participantes daquela festa de natal saiu frustrada. Com o ímpeto de um iconoclasta havia jogado por terra uma das mais caras crendices (ou cretinices?) dos adultos. Uma violência despropositada – disseram alguns – contra o espírito do natal que animava aquela festa. Tem nada não, o objetivo foi alcançado. Neurônios foram despertados e vibraram vigorosamente. Alguns contra. Outros a favor. Tudo bem, a mim, já que a professora insistira, importava dar um choque naquela gente hipócrita que fazia as crianças acreditarem que o Papai Noel fora sempre esse vovozinho tão bonzinho! Gente que nunca havia pensado nos milhões de crianças que – como eu até aos 10 anos – no natal jamais receberam a visita do Papai Noel.
Naturalmente que, naquele natal de 1996, a frustração do menino de onze anos que viera dos cafundós do Judas do Maranhão era coisa do passado. Homem feito sabia muito bem quem era o tal velhinho. Papai Noel e eu nunca resolvemos nossa quizila particular. De qualquer forma, a essa altura do campeonato e pela força das circunstâncias obrigamo-nos a mútua tolerância. A uma convivência quase amigável. Obra de minha filha mais velha que, quando com três anos, numa bela noite de natal, deixando-se envolver pela lábia do barrigudo velhinho, que desta feita não esperou a menina pegar no sono, recebeu dele uma linda boneca de última geração. Isso foi o fim da picada. O sagaz condutor de renas convenceu-a definitivamente de sua fama de bonzinho. Os três filhos seguintes seguiram a mesma trilha. Todos foram aliciados pelo tal Papai Noel. Perdi a batalha. Transformei-me em mais uma vítima do “doce chicote” desse velhinho maquiavélico. Ou velho Nick?  

quarta-feira, 24 de outubro de 2012


ELIM, MEU PARAÍSO SECRETO
José Henrique Ferreira Leite
Escritor bissexto.
       
        Alguém duvida da existência de paraísos na terra? Pois não duvidem, eles existem. E não precisa ser um lugar com árvores, rios, cascatas, pássaros e um céu azul sempre estrelado com anjos vestidos de branco pra lá e pra cá. Tudo bem que um lugar assim é mesmo um paraíso. Mas, às vezes, o paraíso para alguém basta que atenda suas expectativas naquilo que lhe traz felicidade. E não há felicidade eterna. Isso simplesmente não existe. Se existir pode ser tudo, menos felicidade. Não sei por que, mas a cristandade deslocou o paraíso para fora da terra colocando-o não se sabe onde. Se se perguntar a qualquer cristão, desses que acreditam que o paraíso fica fora da terra dirá que está no céu ou que o paraíso é o próprio céu. Mas, e onde está o céu? Nenhum cristão sabe responder. Conclusão: no máximo saberá dizer que o céu ou paraíso é um lugar de muito gozo. Bem, essa é uma discussão para ser resolvida pelos teólogos; ou quem sabe, para ser definida no dia do juízo final. Por enquanto cuidemos dos paraísos que existiram ou existem na terra. Eu por exemplo, conheço vários paraísos aqui pertinho de Boa Vista e mais distantes, mas todos aqui na terra. Quero falar de um deles, agora.
        No mês de outubro de 1959 – esse foi talvez o ano mais importante de minha vida – com uma semana de antecedência, a meninada de casa foi avisada de que no sábado seguinte haveria piquenique da igreja. Coisa nova para mim. Recém-chegado na cidade e na igreja batista, não sabia nada dos costumes dessa gente.  Mas diante da alegria dos meus primos e vizinhos – que já sabiam o que era um piquenique – embarquei na onda e fiquei muito animado também. E não foi animação à toa. Quando chegou finalmente o dia tão esperado, por volta das oito e meia da manhã uma velha caminhoneta dos gringos da igreja chegou ao portão de casa para levar toda a família para o tal piquenique. Dez pessoas entre adultos e crianças embarcaram naquele veículo. A caforinga saiu lotada com destino ao local do convescote. Mas que lugar era esse que despertava tanto interesse quando se falava em piquenique da igreja? Adiante revelarei. Por enquanto direi que ficava dentro dos limites da propriedade da Igreja Batista Regular de Boa Vista, uma considerável área de 41 hectares, hoje tomada pelo Bairro “Parque Caçari”. Atualmente a área da igreja está reduzida a menos de dez hectares, mas com estrutura para encontros, convenções, seminários e retiros espirituais.  
        Voltando ao fio da meada, com a nossa chegada dava-se a última viagem da velha caminhoneta. No local pude observar que já tinha um punhado de gente da igreja aboletada debaixo de árvores de copas verdíssimas, toalhas estendidas sobre a areia muito fina e branca e a água cristalina do rio Cauamé lambendo os pés das pessoas. De longe dava pra sentir o cheiro gostoso – de galinha caipira bem temperada, macarrão, vatapá e farofa – carregado pela fresca brisa de outubro. Todos os anos e naquela mesma data mais de quarenta pessoas da igreja entre adultos, jovens, adolescentes e crianças se reuniam naquele lugar para um dia de descontração e descanso. Já todos reunidos o líder da igreja fazia pequena preleção seguida de oração e recomendações. Após esse momento todos estavam liberados para o banho, jogos e pescaria. Fiquei encantado com o lugar. Amor à primeira vista! Não que não houvesse lugares tão ou até mais bonitos do que aquele. Sim, havia. Mas aquele se tornou especial para mim. E o motivo se verá a seguir.      
        Foi lá, naquele sítio, que vivi os melhores dias da minha vida no fim da infância (estava com onze anos), toda a adolescência e parte da juventude. Três fortes lembranças me incitaram a escrever este texto: Em primeiro lugar foi naquele oásis que do terceiro piquenique em diante comecei a sentir pela primeira vez o despertar de umas vibrações estranhas quando via passar por perto certa garota da igreja. Eros por certo já me cutucava a libido. Foi lá que, sem que houvesse alguém para me explicar – era muito novo para entender dessas coisas – fui tomado por uma sensação avassaladora que me fazia olhar para aquela sílfide como fosse a encarnação de uma deusa a ser cultuada. Mas o estranho é que junto com as vibrações de pura veneração brotavam também ímpetos de abraçar e beijar aquela fada. Foi naquele lugar, dos treze anos em diante que pela primeira vez o mundo das fantasias infantis foi cedendo espaço a sensações que antes desconhecia. Foi ali, no meu paraíso secreto que, mesmo nos raros momentos em que pude tocar as mãos ou flagrar um fortuito olhar daquela diva quase inacessível que descobri a paixão. Paixão que tantos anos depois faz lembrar-me das alterações emocionais, do suor frio e do aumento da pressão e do ritmo cardíaco que a presença dela causava em mim. Vão-se mais de cinquenta anos, mas recordo dos arrepios e da felicidade indescritível que sentia diante daquela fada de carne e osso. Aquilo não era apenas atração fraternal. Era atração hormonal.
        Em segundo lugar, outros momentos de grande alegria proporcionados pelo meu paraíso secreto aconteciam a partir da tardezinha das sextas-feiras até o final do dia seguinte. E que momentos! O que poderia acontecer de melhor na vida de um adolescente do início da década de sessenta do que passar a noite com amigos correndo pra lá e pra cá na imensa praia Caçari, no Elim? Algo melhor do que já com sono deitar-se de papo pro ar de olhos grudados na imensidão do céu salpicado de estrelas? Coisa mais fascinante do que assistir, momento após momento, estrelas cadentes riscando a escuridão celeste?
        E, as pescarias... Quanto peixe se pescava! E, ali mesmo, sobre um rústico jirau de varas verdes um enorme pirandirá era imediatamente assado e comido vorazmente! Repito: sair com os colegas da Ville Roy para pescar no caçari era a maior das diversões do meu tempo. Pelo menos para mim. Fazia de tudo pra dar conta das tarefas de casa até meio dia das sextas-feiras. A molecada da vizinhança toda ajudava. Lá pelas quatro da tarde saíamos em bando e só voltávamos sábado à tardinha. Normalmente a pescaria rendia muitos peixes: O Cauamé tinha uma variedade e uma quantidade enorme deles. Entre outros: Tucunaré, surubim, jandiá (jundiá), pirandirá, pirapucu, pirarara, sulamba, pescada, Aracu, pacu, cará, matrinxã, jaraqui, mandi, curimatã, cubiu, sardinha, jacundá etc. Tinha também uma grande variedade de piabas que pegávamos para fazer isca. A do rabinho vermelho era a preferida dos tucunarés, pirandirás e pirapucus, peixes vorazes e valentes na linha! Às vezes a pescaria era tão boa que era preciso dar uma viagem a cidade trazendo a peixada para não apodrecer. Isso dava uma reforçada no cardápio da casa. A pescaria era um programa e tanto! Mas, exigia certos cuidados: primeiro com as cobras venenosas na beira do rio e as sucuris dentro d’água. Dificilmente eram vistas, mas todo mundo sabia que elas estavam ali pertinho da gente. Além das cobras venenosas e das sucuris no rio, dois outros bichos da água metiam medo e era preciso muito cuidado com eles: as raias (arraias) com suas ferroadas de dor insuportável e custosas de sarar e o poraquês cujos choques podiam até matar. Acidentes com bichos como esses era fim de pescaria, na certa! A molecada já sabia: caminhar dentro d’água arrastando os pés na areia para evitar ferroada das arraias. Não tomar banho perto de galhadas nem locais profundos e de muitas pedras; aqueles eram os lugares preferidos dos poraquês e das sucuris. No mais era só alegria!
        Por último, quando já saía da adolescência para a fase jovem devo lembrar os retiros espirituais da igreja durante o período da quadra carnavalesca. O local para esse evento ficava e ainda hoje fica na parte alta do lugar, afastado uns trezentos metros da praia. Todo ano um mês antes do retiro se construía rústicos barracões de palha para pernoite e demais atividades do evento. Ainda bem jovem, sempre participei dos retiros da igreja com muito interesse e responsabilidade. Os retiros me proporcionaram momentos de muito prazer: Ora pelos importantes estudos bíblicos e assuntos outros de interesse da comunidade batista, ora pelos momentos de lazer e brincadeiras de salão e jogos variados, ora pelas boas oportunidades de engatar um namoro há muito desejado. Em relação ao último item jamais me esquecerei de duas lindas moçoilas da igreja que em momentos diferentes estraçalharam meu coração: Lóis e Loilde. As amei de verdade. Mas na época não tinha pedigree suficiente para convencer seus pais de que um dia perderia as pulgas (risos).   Dos primeiros retiros reforço, porém, meu grande interesse pelas atividades ditas espirituais. Encarava e sempre encarei a aprendizagem bíblica com muita seriedade e honestidade. Mesmo discordando muitas vezes de certos preletores convidados. Às vezes, diante de textos bíblicos intrincados o hermeneuta escorregava feio! Mas aquilo me despertava mais ainda o interesse e a vontade de fazer altas indagações sobre o tema. Se para alguns esses eram momentos enfadonhos, para mim eram de grande interesse. Foram momentos úteis de grande proveito e que me deram a base teológica dos princípios cristãos que abracei para sempre. Mas não me transformei num tipo religioso ortodoxo nem conservei idiossincrasias que alguns contemporâneos meus ainda adotam. Virei um cristão de livre pensar.
        Por fim, pondo um ponto final neste texto, faço lembrança de uma frase que me foi dita por uma grande amiga e ex-missionária presbiteriana, Julieta. Disse-me ela ao tentarmos compreender o paraíso descrito no apocalipse: “Sabe, José, esse paraíso do apocalipse com ruas calçadas de ouro e encravadas de pedras preciosas não me atrai muito, não! Um paraíso sem o sol, sem as estrelas, sem os mares, sem árvores, sem pássaros... Sei não... Acho que a terra com uma pequena reforma daria um melhor paraíso!” Concordei com ela na bucha!
        Por isso é que meu paraíso secreto tinha tudo isso de que ela falou. Um ELIM me bastaria!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012


O ANTIGO MERCADO
José Henrique Ferreira Leite
Escritor bissexto.

        Não tenho dúvida de que aqueles que tinham entre oito a dez anos em 1960, hoje sessentões, devem lembrar muito bem do mercado que ficava na Rua Floriano Peixoto fazendo fundo para o Rio Branco, exatamente no local onde hoje funciona o Centro Multicultural de Boa Vista. Chegava-se ao mercado descendo pelos degraus da curta escada que ainda está mo mesmo lugarzinho, e que se inicia entre duas colunas do velho muro de balaústres construído pelos dois primeiros governadores do Território do Rio Branco.  
        Particularmente, conservo vivas recordações do velho mercado. Era pra lá que ao completar meus doze anos, de vez em quando, pela parte da tarde, ia ajudar meu tio postiço Antônio Seabra no pesado serviço da acanhada fábrica de gelo que ocupava parte da ala esquerda de quem entrava no prédio. O mercado tinha um desenho interessante: quatro edificações unidas pelos cantos formando um quadrilátero, deixando internamente um amplo espaço descoberto. A área descoberta servia para a circulação de mercadorias e movimentação dos frequentadores do mercado. O prédio foi especialmente divido em vários boxes para o comércio de carne e mercadorias variadas de primeira necessidade.
         Dos que faziam do mercado seu local de trabalho, os magarefes predominavam no pedaço e eram bem conhecidos de todos que trabalhavam ou iam fazer compras ali. Era uma classe barulhenta. Nos meus momentos de folga, quando todas as fôrmas já estavam cheias d’água e nos seus devidos lugares para fazer o gelo, gostava de ficar ouvindo os gritos, brincadeiras e piadas daqueles homens que pareciam ser muito felizes. Dos magarefes lembro bem do seu Pedro Maçarico, Pagão, Palheta, Raimundo Magarefe, entre outros que atendiam a clientela com muita animação e esbanjando bom humor. Meu tio postiço Antônio Seabra, responsável pela fábrica de gelo, se misturava com eles para contar suas piadas. Contava-as diariamente sem nunca repetir uma só. A turma que ganhava o pão de cada dia ali fazia roda para ouvi-lo. Ficou conhecido como o maior contador de piadas do mercado. Para sua tranquilidade o Otoniel não aparecera ainda por essas bandas. Havia piadas de todos os níveis e para todos os gostos. Esses momentos de folgança iam até que um dos magarefes – batendo com força e repetidamente o afiador de facas na bancada – avisava que a carne estava chegando do curre[1]. Aquele aviso mudava toda a movimentação do mercado. Cada um que já tinha deixado sua cesta marcando lugar na fila do magarefe de sua preferência corria para evitar que algum furão entrasse na sua frente e fosse atendido primeiro. Não faltava gente dessa natureza. Por exemplo, se era pessoa do alto escalão do governo o melhor era ficar calado mesmo. Esses sempre gozaram de privilégios em qualquer lugar do Brasil. Não seria em uma comunidade simples e provinciana como a nossa que isso não haveria de acontecer. Adiantaria reclamar? Deixemos isso pra lá e vamos cuidar de outras figuras e fatos que marcaram a vida do velho mercado de Boa Vista. Já falamos dos magarefes, a classe mais numerosa, barulhenta e organizada do mercado. Agora é a vez dos proprietários de boxes que vendiam mercadorias em geral. Minha memória acusa três desses comerciantes: o senhor Vicente Eloi, que ocupava dois boxes. Seu comércio era sortido e tinha ótima freguesia. Além disso, dominava o mercado com o melhor café torrado e moído na hora. O cheiro do gostoso café se espalhava por todo o ambiente do mercado. Outro comerciante era o senhor Antônio Venâncio, que ocupava um boxe menos sortido, mas era sócio de seu compadre Vicente Eloi em outros negócios. Por último, um sujeito branco cheio de sardas, baixo e atarracado, entonado no seu indefectível conjunto de calças e camisa de linho branco ou amarelo sempre bem engomado. Nunca soube do seu nome. Todos o conheciam pelo apelido de Russo (ou Ruço?). Tinha fama de rico e ocupava sozinho três boxes. Seu estoque de mercadorias era o maior do mercado.
        Não devo esquecer, porém, que do lado de fora do mercado floresceu um movimentado comércio paralelo que vendia os mais variados produtos e mercadorias. A fiscalização era quase nenhuma. Cada um ia chegando, construía e instalava seu quiosque no padrão e no lugar em que bem entendesse. Eram instalações precárias com pouca preocupação com a estética e a higiene. Aliás, os restos estragados dos produtos desse descuidado comércio, bem como dos que funcionavam dentro do mercado – frutas, verduras, cascas, papelão, vidros, ossos, sangue, etc. –, tudo era jogado na ribanceira do rio. O que não caía na água os cachorros e urubus tomavam de conta. De qualquer maneira, nunca se ouviu falar de problemas de contaminação séria entre os que trabalhavam ali ou dos seus usuários. Bem, eu era menino e dessas coisas não cuidava ainda.
        Precariedade das instalações e higiene deficiente à parte, não consigo lembrar-me dos nomes dos comerciantes que atuavam do lado de fora do mercado, com exceção de um: o inesquecível Tenório.  Quem daqueles que iam ao mercado para comprar carne não se recorda dele? O homem vendia o melhor mungunzá da cidade naquele mercado. Não tinha sentido algum ir ao mercado e não passar pelo Tenório para tomar uma boa porção do delicioso mungunzá temperado com canela, servido numa tigela branca fumegando. Tenório era sinônimo de parada obrigatória. Tem mais: Ao domingos, quem quer que fosse ao mercado tinha que levar uma ou duas latas de leite ninho bem limpinhas para trazer daquele mungunzá pra casa. No café da manhã dos domingos de muitas famílias rio-branquenses daquele tempo não podia faltar na mesa o delicioso mungunzá do Tenório. 
        Outro hábito da época: comprar gelo no mercado. Normalmente um terço ou meia barra. Dependendo da necessidade da casa. O senhor Antônio Seabra sabia recortar com perícia uma barra de gelo. Não estragava quase nada. Para chegar a casa com a pedra d’água intacta, o comprador enrolava-a num saco de estopa com serragem de madeira ou palha de arroz e a prendia na garupa da bicicleta. Explica-se: na maioria das casas das famílias da década de 50 e 60, não havia geladeira, nem freezer nem caixa de isopor. Só as famílias mais abonadas, desfrutavam desse luxo. E geladeira tocada a querosene. Comprava-se este combustível em latas de dezoito litros. O bom era o que trazia o desenho de um jacaré. Quem não possuía geladeira nem podia comprar gelo todo dia remediava-se com bons potes de barro. Tinha deles que com o ventinho constante do verão esfriava tanto que suava[2]. Esse era dos bons! Se o pote não era do tipo suador, enrolava-se um saco de estopa molhado em torno dele e o problema estava resolvido. O bichinho virava uma geladeira! Em última instância, quando tinha gelo em casa jogavam-se umas pedras dentro do pote, e pronto!
        Mas a fábrica de gelo do mercado atendia outra demanda: a dos vendedores de rala-rala. Nesse caso a compra era maior. Vendedores da Praça capitão Clóvis como seu (....) e(....) compravam normalmente uma barra e meia em dia de semana e três ou quatro barras para os sábados e domingos. Nestes dias o mercado fechava. O processo para a conservação do gelo era o mesmo. Usavam serragem de madeira ou palha de arroz. As barras eram acondicionadas em um dos compartimentos dos seus carrinhos de madeira de vender rala-rala.
        Não gostaria de encerrar o texto com relato que não fizesse boa lembrança do velho mercado de Boa Vista. Mas, por compromisso com a verdade vejo-me obrigado a lembrar dos repetidos episódios que ali aconteceram em certos momentos do início da década de 60. O que não diminui sua importância no contexto histórico em que existiu. No ano de 1961, não sei o porquê, deu de faltar carne na cidade. Nem todo dia da semana tinha o produto. Às vezes faltava a semana toda. E, para piorar as coisas, o câmbio negro não custou a aparecer. O comércio paralelo ditava o preço ao seu bel prazer. Pouca carne chegava ao mercado. Para poder comprar, as pessoas tinham que correr pra lá já pelas duas horas da madrugada. Havia gente que dormia colado ao portão quando ouvia falar que a bendita carne chegaria pela madrugada. Até hoje não entendi o porquê daquele horário tão impróprio. Mas foi assim por um largo período daquele ano. O pior de tudo isso é que, além do horário, não havia o mínimo de educação e respeito da parte dos adultos em relação aos meninos e velhos que se acotovelavam na frente do portão fechado, na esperança de poder comprar seu quilinho de carne. Ao ser aberto o portão, a multidão arrojava-se para dentro do mercado feito estouro de uma boiada. Ai de quem caísse! Saía dali todo machucado. Essa é uma página triste daquele saudoso mercado e que me faz lembrar do velhinho de olhos empapuçados apelidado de Amigo da Onça que, sem forças para enfrentar o tropel chegava ainda pela tarde no boxe do senhor Vicente Eloi e tascava: Ô seu Vincente... Vinhará carne amanhã?
         O mais... Só boas lembranças! 



[1] Ouvia os mais velhos pronunciarem curre. Tudo indica, porém, que a palavra correta é curro; ou seja, uma espécie de curral de espera do gado que vai ser morto para consumo. Originalmente era e é o lugar anexo à praça de touros, e onde estes ficam antes e depois da corrida. 

[2] Existiam potes de barro com fama de que esfriava bem a água. Dizia que esfriava que suava, ou seja, pelos poros do pote brotavam minúsculas gotas d’água deixando a parede externa úmida. 

AUTODEFINIÇÃO
José Henrique Ferreira Leite
Poeta bissexto


Nasci livre...
Ser indomado.
Rédeas soltas,
Jamais encabrestado.
Avesso aos arreios,
Hostil às viseiras...
Amarras não têm meu aceite.
Nasci livre,
Ser pensante:
José Henrique Ferreira Leite.

domingo, 23 de setembro de 2012


GRUPO ESCOLAR SÃO FRANCISCO
José Henrique Ferreira Leite
Escritor bissexto

        Ontem, dia 30 de julho de 2012, pus os pés em um lugar que há 52 anos não visitava. Enquanto fazia algumas fotos fiquei pensando porque passei tanto tempo sem voltar a um lugar que foi tão importante para a minha vida e de muitos amigos, uns inclusive que já partiram para a outra dimensão. Coisa que não sei explicar. Só sei que sem ter falado no assunto anteriormente e sem ninguém para me despertar, automaticamente acordei por volta das quatro da matina com algo cutucando minha cabeça e trazendo-me recordações do meu antigo e inesquecível Grupo escolar São Francisco. Foi nessa escola que, um dia, um mundo novo se descortinou para mim na primeira aula do ano letivo de 1960. Começava ali, no Grupo Escolar São Francisco, primeira série do primário, minha vida de eterno estudante. Daquele dia em diante nunca mais desgrudei dos livros ou de rabiscar alguma coisa diariamente. Aprendi a devorar livros com a fome dos bichos que acordam depois de longa temporada de hibernação. E é ao Grupo São Francisco com seu corpo docente dos meus tempos de primário que responsabilizo por essa fome que tenho de livros e das boas histórias de época.
        Para minha sorte e grande regozijo, o prédio onde funcionou o antigo Grupo São Francisco conserva a mesma arquitetura de quando foi construído. A única diferença é que naquele distante ano de 1960 a área ao redor do prédio não tinha muro. De longe se via a edificação bem diferente das demais em que funcionavam outras escolas daquele tempo. Observando-se a partir da escola, para todos os lados se via o capinzal do qual emergiam as plantas típicas do lavrado.  Para os lados do hoje Parque Anauá, coisa de uns 300 metros adiante havia uma extensa baixa que no inverno virava uma grande lagoa. Nos intervalos, mesmo com a severa proibição, um bando de meninos danados corria pra tomar banho no límpido espelho d’água.
        Posso dizer, sem medo de errar e sem saudosismo piegas: o ensino repassado pelas professoras do Grupo São Francisco tinha seu valor! No final de ano ou de cada semestre não havia necessidade de recuperação. Quando muito, aquilo que se chamava de segunda época, no período das férias de janeiro e fevereiro. Mas ai de quem ficava pra segunda época... Tinha que se rebolar! Aluno preguiçoso repetia até passar ou dava no pé. A história se repetia nas demais unidades de ensino contemporâneas.
        Quando comecei minha primeira série estava com 11 anos. Comecei minha vida de estudante um pouco tarde. Cheguei a Boa Vista em agosto de 1959 vindo de uma localidade totalmente desconhecida das brenhas do Maranhão. Não sabia ler nem escrever. Aliás, nunca tinha visto ao que se chamava na época de cartilha do ABC. Mesmo assim minha tia já se decidira por me matricular na primeira série do primário (saltando o pré-primário) ao chegar o início do ano letivo de 1960. E aqui cabe um parêntese para tratar desse assunto. Como iniciaria na primeira série sem saber patavina de leitura, de escrita e de tabuada? Mas aqui entra a primeira parte da história para poder chegar ao Grupo Escolar São Francisco. Minha diligente tia Ester já pensara em tudo. Em conversa com a professora Lidia Coelho (Tavares, após o casamento), esta assumira o compromisso de desasnar o moleque sambudo que chegara do Maranhão. Sambudo sim, mas doido para aprender a ler! Não encontrei dificuldades diante dos rudimentos do saber. Do que posso lembrar, só estranhei mesmo a primeira cartilha. A professora me dissera: olha aqui, tudo o que existe no mundo tem nome, e esses nomes se escrevem com as letras do alfabeto que se constitui de 23 letras que vão de A a Z. Você vai aprender a reconhecer as letras relacionando-as aos objetos, animais ou aves desta cartilha. Por exemplo:
– Que figura é este da primeira página?
– É uma asa, respondi.
– Muito bem! Pois o nome asa começa com a letra A, entendeu?
 – Sim, professora. Respondi.
        Mas a coisa empacou logo na quinta, sexta e sétima letras: Que bichão era aquele com enormes orelhas e rabo na cabeça e na bunda? E o animal seguinte, um bicho deitado numa imensa superfície branca como algodão, com arremedo de patas e uma bola no focinho? E o outro, tão alto que alcançava as copas das árvores? Hoje sei que se Gilberto Freire tivesse idealizado aquela cartilha jamais teria colocado para ilustrá-la objetos, animais ou aves desconhecidos dos brasileiros carentes de alfabetização. Quem nas mesmas condições e tendo vindo de um lugar como aquele de onde cheguei saberia identificar de primeira um elefante, uma foca ou uma girafa? Ou bichos como hipopótamo, javali, lhama e zebra? Frutas como maçã e uva? Lugares como um Oasis ou ainda embarcações como um navio? Nunca tinha visto e nem sabia da existência desses bichos, coisas ou lugares. Por aí se vê minha dificuldade inicial no tal processo de aprendizagem do alfabeto. Ainda bem que o problema foi passageiro. Graças o ímpeto com que busquei aprender. No natal do mesmo ano, um pouco mais de três meses e meio, já brindava os de casa com a correta leitura de quaisquer textos que aparecessem e a tabuada na ponta da língua.
        O aprendizado continuou. E agora sentimos que é o momento certo de fazer lembrança do saudoso Grupo São Francisco, da diretora e das professoras. Sim, diretora e professoras porque lá no Grupo São Francisco não existia a figura masculina do diretor e professor. Pelo menos enquanto fui aluno daquela escola. A Diretora chamava-se Joana da Silva e as professoras: Diva Sindeaux, Doquinha Cavalcanti, Lidia Coelho, Lúcia Menezes de Bezerra e Catarina Miraboa. Todas elas excelentes professoras. Uma aula de uma dessas professoras é o que modernamente se poderia chamar de show de bola!
        A disciplina da escola era rígida; tanto no aspecto comportamental como em relação à cobrança das matérias. Mas não se diga que havia um clima de medo. Isso não. Diante de atos de indisciplina, briga entre colegas e o que hoje se chama de bullyng – que já existia, e muito! – a diretora resolvia todas as paradas sem precisar chamar pais ou responsáveis. Ninguém tinha coragem de enfrentar ou ameaçar professores como nos dias atuais. Os alunos se pelavam de medo do quarto escuro[1]. Com relação a esse tal quarto escuro posso revelar hoje: não existia. E por que digo isso? Porque nesse período de grupo São Francisco, talvez eu tenha sido o aluno que mais brigou! Também, pudera! Recém-chegado do interior do Maranhão, todo moleque que se dizia da cidade queria limpar as mãos em mim. Bullyng, puro! Tinha que me defender. No início apanhei bastante... Mas, da metade pro fim virei galo de briga e nunca mais levei desaforo pra casa nem levei a pior. Inúmeras vezes fui levado à diretoria para – como acreditavam os colegas – ser trancafiado no quarto escuro. Mas aqui cabe nova revelação: A cada briga – que acontecia sempre no intervalo – a diretora Joana chamava minha professora para se informar sobre meu comportamento em sala e minhas notas. A resposta como sempre conspirava a meu favor. Comportamento excelente e notas nunca abaixo de noventa, respondia a professora. Naquele tempo computavam-se as notas de zero a cem. Para os melhores alunos tinha até cem estrelado (100*).  A diretora Joana, então, botava-me de frente pra ela na sua mesa e mandava-me ler algum texto do livro “Meu Tesouro”, da professora Zélia, correspondente a série que eu estava fazendo. Fiz isso até a quarta série e nunca vi o tal quarto escuro. Como se diz hoje, nota dez para a saudosa e querida diretora Joana, que com sabedoria soube me defender dos meus agressores e, de quebra, fez despertar-me o gosto pela leitura em situação tão adversa. Acrescente-se ainda, não permitindo que eu virasse um moleque revoltado avesso à escola.
        Poderia relacionar inúmeras passagens das quais fui protagonista e às vezes quase vítima durante meu período como aluno do Grupo Escolar São Francisco. Contarei somente duas para terminar e não cansar tanto o leitor:
        A primeira história em questão se deu na véspera do natal de 1960. Adianto que foi minha segunda decepção com tal “bom” velhinho de barbas brancas. No natal passado ele me aprontara uma de lascar! Não vale a pena repetir esta história aqui. Mas vamos a esta segunda decepção: A turma estava bastante animada sabendo que o natal estava às portas. A professora Lidia Coelho na aula anterior avisara que todos se preparassem para fazer um pedido por escrito ao Papai Noel. Na realidade, a professora pretendia matar dois coelhos com uma só paulada: ensinar os alunos sobre um dos personagens mais queridos da cristandade e treiná-los na arte de escrever textos mais elaborados.
        Confesso que a decepção do natal anterior me deixara um tanto ressabiado com o “bom” velhinho. Mas como respeitava muito a professora que me ensinara a ler e escrever confiei que um pedido recomendado por ela sensibilizaria o tal Papai Noel. Ato contínuo ela passou para cada aluno uma folha de papel almaço com pauta dizendo que o pedido deveria ser feito em no mínimo dez linhas e máximo a critério de cada um.  De pronto fiz a margem e comecei a escrever. Enchi a primeira página, a segunda, a terceira, e quando estava terminando as últimas linhas da quarta página notei que faltava muita coisa ainda para terminar o pedido. Solicitei outra folha da professora. Nisso todos já tinham entregado seus pedidos e eu ainda pela metade. A professora ficou intrigada com tanta escrevinhação! Viu-se obrigada a perguntar-me o que tanto pedia ao Papai Noel. Advertiu-me: só vale um pedido meu jovem. Eu sei professora. É que estou pedindo uma bicicleta de três marchas, com todos os equipamentos e acessórios. Estou relacionando tudo. Não quero que esse Papai Noel esqueça nada. No natal passado ele me deu a porcaria de um minúsculo carrinho de plástico. Estou falando tudo isso pra ele. O pedido é um só, mas quero que ele se lembre de tudo. A senhora pode me dar mais uma folha de papel? A professora Lidia me deu mais uma folha. Ao finalizar o texto ela ficou espantada! Entreguei-lhe as duas folhas de papel com as oito páginas totalmente preenchidas. Comentou isso com a diretora e os demais professores. Soube que ficaram impressionados! Mas, e o Papai Noel? O salafrário nunca passou em casa para me entregar a bicicleta que pedi. Mais uma que ele aprontou pra cima de mim. E tem sido assim até hoje. Às favas com esse tal bom velhinho.
        Outra parada indigesta que tive de suportar por vários meses, acossado que fui pela gozação de meus colegas, se relaciona a visita que o então governador do Território fez ao Grupo. O governador chamava-se Francisco de Assis Albuquerque Peixoto. Este tomou posse no dia 23 de fevereiro de 1963 por indicação de Gilberto Mestrinho que tinha sido eleito deputado pelo Território na eleição do final do ano anterior. O governador, aproveitando para conhecer as escolas e seus funcionários, com o diretor de educação e a diretora do Grupo fazia o levantamento de quantas crianças precisariam de farda e sapatos para as comemorações do dia 7 de setembro daquele ano. O próprio governador indo de sala em sala botava o olho aluno por aluno e ia dizendo quem precisava ou não de novo fardamento.  Ao chegar a minha vez fiz como minha professora Catarina tinha ensinado e como todos faziam na presença do governador: com um leve declinar de cabeça o cumprimentei respeitosamente e continuei de pé para que ele me olhasse direitinho e externasse sua decisão. Decepção! Para minha surpresa o governador falou: esse aqui está muito limpo e com a farda em ordem. Não está precisando de fardamento novo. Os pais com certeza podem arcar com as despesas dele. O fardamento é para criança pobre. Engoli aquilo em seco e corei de indignação! Imediatamente enchi-me de coragem, levantei a perna direita e mostrei o solado do sapato com um enorme buraco. Falei:
– Seu governador, eu sou pobre, moro com meus tios, só tenho essa farda e ganhei estes sapatos dos americanos da minha igreja.
– Mas que menino audacioso é esse, diretora? Anotem duas fardas e dois pares de sapatos pra ele. Foi a única coisa que disse. Com um leve sorriso mandou que me sentasse. Obedeci-o, estatelado!
        Um mês depois, se não me falha a memória, por volta do dia 22 ou 23 de agosto daquele ano o diretor de educação apareceu para entregar as novas fardas e sapatos para os alunos necessitados. A audácia (ou desespero?) me agraciara com duplo fardamento e sapatos. Que bom, finalmente iria calçar sapatos de primeira mão. Até ali minhas roupas e sapatos eram todas de segunda mão doados pelos missionários gringos que frequentavam minha igreja. Mas paguei alto preço por isso. Meus desafetos, que ficaram morrendo de inveja, passaram a me perseguir mais ainda. Pior, desses que não gostavam de mim alguns estavam na fila e ouviram quando disse ao governador que tinha ganhado os sapatos dos americanos. Resultado: passaram a me aporrinhar a todo o momento com o apelido de Americano. E em que dava isso? Peleja todos os dias!
        Contudo, afora esses senões que ninguém podia controlar o Grupo Escolar São Francisco foi de grande importância na minha vida! O grupo, minha bondosa diretora Joana e as professoras mais queridas e competentes do mundo que passaram por minha vida!     


[1] Um pequeno compartimento sem luz, que se dizia existir em toda escola pertinho da sala da diretoria. A lenda era a de que todo aluno que fosse flagrado brigando, faltando aula ou bagunçando na sala de aula era levado para aquele lugar.