SUSTO DE MATAR
José Henrique Ferreira
Leite
Escritor bissexto.
Não poucas vezes, ao longo da vida,
vivemos momentos de intensa felicidade, tristeza e grandes sustos. Somos seres
limitados. Não podemos fugir disso. No quadro dessas limitações está nossa
total incapacidade de prever o que nos acontecerá já nos momentos seguintes,
nos próximos segundos. Diante dessa absoluta falta de aptidão para prever o
futuro, o dia a dia, por vezes, nos prega alguns sustos. Sustos que podem até
trazer surpresas agradáveis. Sustos ocorrem, porém, que se fosse possível
antevê-los passaríamos há milhares de quilômetros deles.
Trinta e quatro anos já se passaram –
mas lembro com toda nitidez – desde que levei um desses sustos de deixar o
sujeito totalmente paralisado. Sim, porque no caso do susto que passo a contar,
falar só da falta de ação não diz do verdadeiro estado em que fiquei. Na
verdade, fiquei em situação de total desespero.
O ano era o de 1978. O Coral da
Secretaria de Educação e Cultura do então Território Federal de Roraima, sob a
batuta do saudoso maestro Dirson Costa, era o que de bom possuía a terrinha em
termos de cultura musical. O Coral da SEC, como era conhecido, depois de alguns
anos de criterioso trabalho e rotineiros ensaios transformara-se em um dos bons
corais do Brasil. Tanto que, à época vinha de alguns périplos por algumas
capitais do país. A toda hora o coral recebia convites para encontros e
temporadas Brasil afora. Até convites para apresentações internacionais. De
Caracas e Lima os convites já estavam confirmados. O repertório dos seus
quarenta e oito figurantes era de muito bom gosto, consistente e variado. Ia do
rico acervo folclórico e popular brasileiro de todos os tempos e de diversos
países. Sem contar que, o forte do repertório do grupo baseava-se em peças dos
grandes compositores clássicos.
O coral tinha uma diretoria comprometida
e atuante. Naquele ano o grupo todo se empenhara na realização de uma série de
promoções para angariar fundos com vistas a cobrir parte das despesas de viagem
a Recife, onde iria participar de um encontro nacional de corais. Só uma parte
dos recursos, porque naqueles bons tempos, o Governo do então Território
Federal, que compreendia a importância da cultura, entrava com a maior parte
das despesas de viagem do grupo. Havia sensibilidade da área governamental em relação
àqueles que tinham talento, amor, disposição e coragem para enfrentar os duros
e longos ensaios e viagens para levar o nome de Roraima aos mais distantes
recantos do Brasil e países vizinhos. No caso, a viagem se daria em duas etapas:
Até Belém, ida e volta com passagens de avião pagas pelo Governo. De Belém a
Recife, ida e volta, despesas com frete de ônibus por conta dos componentes do
coral. Por isso, as promoções para arrecadar recursos.
Em 1978 a população de Boa Vista não
chegava a 100 mil pessoas. Dava para envolver significativa parcela da
sociedade em favor de uma específica atividade cultural. Para aquela viagem
promoveu-se vários eventos como festas dançantes, bingo, feijoada, rifas de
animais doados por fazendeiros, sorteio de quadros dos reconhecidos pintores
regionais Walniro e Cardoso e um livro de ouro para receber doações de
empresários, comerciantes e quaisquer outras pessoas que quisessem participar
do projeto. Na época ainda existiam os mecenas da cultura. Além disso, como
estímulo às doações, o coral se apresentava no Palácio da cultura, escolas,
igrejas e sedes de municípios vizinhos.
As promoções deram certo. Juntou-se
recurso suficiente para fretar o ônibus e pagar alimentação para todo o grupo
durante a viagem e mais uma pequena provisão para despesas não previstas.
Aqui começa concretamente a história do
grande susto que levei. Na qualidade de presidente do grupo, do qual gozava
total confiança, saí de Boa Vista três dias antes da viagem para fretar o
ônibus e esperar a turma já no aeroporto de Ponta Pelada, Belém, e dali mesmo
seguir viagem para Recife. Na época não se dispunha dos bons e seguros cartões
de plástico (débito/crédito) hoje tão difundidos e necessários. Tampouco, os
caixas eletrônicos que tanto facilitam nossas vidas hoje em dia.
Embarquei com toda a grana
arrecadada nas promoções. Algo (se atualizada) em torno de 30 mil reais. Como
naquele momento não tinha uma bolsa a tiracolo, peguei a grana toda e coloquei
dentro de uma daquelas pastas de cartolina com elástico e meti-a num enorme
envelope pardo. Passei fita adesiva (durex) para fechar o envelope e escrevi em
letras bem graúdas: “Encomenda aos
cuidados do senhor José Henrique Ferreira Leite para ser entregue na casa das
madres em Recife”. No outro lado do envelope tinha o meu endereço e
telefone de Boa Vista e o mesmo do local em que o coral se hospedaria em Recife,
um casarão habitado por madres. Viajei com aquela “encomenda” colada debaixo do
braço. Compraria uma bolsa a tiracolo logo ao chegar ao aeroporto de Manaus no
intervalo da conexão do voo para Belém.
Cheguei na capital Manauara por volta
das duas horas da madrugada. O voo para Belém estava previsto para as sete da
manhã. Não era prudente nem compensaria ir para algum hotel da cidade naquele
horário. Resolvi ficar ali mesmo no aeroporto até que abrissem as lojas. Nas
vitrines de várias delas vi bonitas bolsas do tipo que desejava comprar.
Como o movimento no aeroporto era quase
nenhum, resolvi acomodar-me em uma das poltronas da sala de espera. Mas ao
chegar à sala dei de cara com a colega Fátima Nogueira, integrante do coral,
que vinha de um encontro de professores em Brasília e que também esperava
conexão para Belém onde se juntaria ao grupo. Seu voo estava previsto para as
oito horas em outra companhia aérea. No que Começamos a papear, informando-lhe o
horário e a companhia em que viajaria, convenceu-me a transferir meu bilhete de
passagem para o seu voo. Pertinho de onde estávamos, coisa de uns cinquenta
metros, ficava o balcão da companhia da colega. Fui até lá pra fazer a
transferência de voo. Maldita transferência! No que peguei o meu bilhete de
passagem para entregar à funcionária que efetuaria a mudança, tirei o bendito
envelope que carregava colado debaixo do braço esquerdo e o coloquei sobre o
balcão com os cotovelos em cima dele. Efetuada a operação de mudança de voo,
peguei o novo bilhete e saí tranquilamente, agora balançando os dois braços.
Nem notei que algo se despregara do meu corpo.
Lá pelas quatro da madruga, já cansado
de papear, pedi licença da colega e busquei um jeitinho na desconfortável
poltrona para tirar uma soneca. Ao tentar forrar a cabeça com o tal envelope
recheado de dinheiro, a surpresa! Ele tinha sumido. Meu Deus! Como teria alguém
furtado aquele pacote que andava grudado no meu corpo? Fiquei pálido e
totalmente perturbado! Contei rapidamente para a colega o que tinha acontecido.
E agora, o que fazer?
Naquele horário, afora alguns
taxistas que conversavam na área externa do aeroporto não havia mais ninguém.
Somente eu e a colega Fátima Nogueira naquela sala de espera. Em estado de
choque, esquecera totalmente de que saíra para providenciar a transferência de
voo. Minha colega então falou:
– José, meu amigo, vi quando você
saiu com aquele pacote debaixo do braço. Quem sabe não o deixaste em cima do
balcão na hora de transferir o bilhete? A funcionária com certeza o guardou até
o dono o procurar. Desespera, não...
Nem quis ouvir mais nada. Saí em
desembestada carreira chegando àquele balcão em pouquíssimos segundos. Não
havia mais ninguém ali. Mas, em uma das prateleiras do balcão, lá estava um
envelope pardo exatamente igual ao que carregava debaixo do braço desde que
saíra de Boa Vista. Não pensei duas vezes: De um salto passei pra dentro do
compartimento, agarrei com força o bendito envelope e corri para o banheiro
mais próximo. Tranquei-me em um dos boxes e sentei no vaso já me desmanchando
por dentro. Rasguei o envelope. Arranquei os elásticos da pasta e conferi a
grana ali mesmo. Cédula por cédula. Não havia motivo para tanto desespero. O
dinheiro estava todo ali.
Ao
retornar para junto da colega meu ânimo já era outro. A barriga totalmente
esvaziada não doía mais e meu coração que havia disparado agora estava no seu tic-tac
normal. O sono era coisa do passado. Estava amanhecendo. Algumas lojas já
abriam suas portas. Corri para a mais próxima que abriu, comprei uma bonita
bolsa a tiracolo da boa marca Sansonite e botei tudo dentro dela; inclusive o
susto e a promessa da amiga Fátima de que jamais contaria essa história sem a
minha permissão. Como estou contando isso agora, ela está livre para falar.
Tirei uma boa lição disso. Não se deve
andar por aí com envelopes soltos. Em algum momento ou em algum lugar você
poderá esquecê-los.